segunda-feira, 10 de maio de 2010

Horizonte Branco II

(continuaçao...)
«Outras histórias do Denali dizem que foi avistado um esquilo a 3.900 metros de altitude, numa passagem rochosa pela qual estávamos a progredir, e que ficou conhecida como ‘squirel point’ (ponto do esquilo). A mais extraordinária, no entanto, fala de um urso que foi avistado no Tahiltna Pass, a subir na direcção do campo 4. Depois, … desapareceu !!! Crê-se que terá caído numa crevasse, das muitas que abundam por alí.
Um passo depois do outro. É preciso continuar. Lembro-me de uma conversa com um colega de trabalho, um psicólogo com quem fazia equipa, enquanto consultor na Egor: este preguntou-me em que pensavam os atletas enquanto corriam a maratona. Imagino que a sua mente divaga entre recordações e pensamentos positivos, alternando com pensamentos e palavras de auto-motivação para seguir o seu objectivo. Talvez seja diferente com os profissionais. Talvez estes consigam manter-se focados no seu objectivo durante todo o tempo, ignorando as dores e dificuldades !? Mas penso que não. Fá-lo-ão por mais tempo, mas não todo o tempo, e utilizarão estratégias para manter a sua mente ocupada, alternadamente entre o objectivo e alguma coisa positiva. Esta é, pelo menos, a minha experiência pessoal, mas eu não sou profissional, nem tenho acompanhamento de peritos …
Continuo. Um, dois, um, … De súbito, quase a chegar ao Windy Corner, parece que cheiro carne grelhada !?! Ahh! “Não pode ser!”, concluí, depois de levantar repentinamente a cabeça. Estava claro que tinha sido traído pelos meus sentidos, e nem tentei localizar a fonte de tal ilusão odorifera. E muito menos procurei tentar encontrar uma resposta para tal fenómeno, provávelmente do foro do subconsciente, para não dizer paranormal. O melhor mesmo era sair daquela zona perigosa do cérebro, pois carne grelhada era algo que certamente não iria provar nas próximas duas semanas…»

terça-feira, 4 de maio de 2010

Horizonte Branco ...

Passagens do meu diário de expedição no Alasca …
«Um passo atrás do outro, concentro-me na sequência e conto: “um, dois, um, dois …”. Continuo! Mas uma dôr distrae-me: o calcanhar esquerdo atrapalha-me, a canela direita também. Seguramente já tenho alguma bolha. Tenho que seguir, tento pensar noutras coisas... Dou a volta ao mundo em pensamentos: possibilidades profissionais, relações pessoais, recordações diversas de lugares e situações … Mas quando algum pensamento negativo emerge, tenho que procurar pousar a imaginação noutro galho. Até que, novamente, uma dôr me alerta: tenho os trapézios contracturados de carregar a mochila, agora já não com 20kg, mas com uns 8kg, mais o ‘pulka’, agora já não com 35kg, mas com 20. Apetece parar e mudar de posição. Mas depois, custará a arrancar! É preciso continuar! Um passo depois do outro. Um passo depois do outro. Senti-me mais pesado naquela subida da ‘motociclete’, mas fui conseguindo manter, junto com a cordada, um bom ritmo. No final daquela primeira subida do dia acabámos por demorar menos tempo do que no dia anterior…
Um passo depois do outro. Esta subida torna-se interminável…! Mas afinal não passou assim tanto tempo! É o esforço físico que custa mais e parece que faz o tempo passar devagar. Mas como é que outras cordadas passam por nós constantemente? Bom, eles parecem subir mais ligeiros! Um olhar de esguelha às suas mochilas e trenós, revela que, normalmente, carregam menos peso. Estaremos nós a cometer o erro de transportar muito de uma só vez, para ganhar tempo? É necessário continuar a dar passos. Aproximamo-nos do Windy Corner. O peso da mochila faz-se sentir e a força da gravidade puxa o trenó para baixo, e a mim para trás. Preciso de abstrair-me destes incómodos. O ranger dos bastões e dos crampons a cravar na neve dura retêm a minha atenção por momentos: imagino gemidos de pessoas ou o chilrear de pássaros. Não! Nada disso! Sigo ali, naquele ambiente gelado e inóspito do glaciar Kahiltna, frequentado apenas por corvos, que desenterram a comida dos depósitos, e outros pássaros mais pequenos, que se aproximam dos acampamentos. Na travessia para o campo 2, em que fomos colhidos por uma tempestade de neve e vento, um desses passaritos veio pousar na mochila do David e dali veio para a minha bota e, como lhe estendesse a mão, fugiu a refugiar-se no meu trenó, ali permanecendo algum tempo. O pobre, estava cansado, mas o vento sul, de frente, dificultava-lhe o vôo para altitudes mais baixas (…)». (continua)

Nota: ‘motociclete’ é a Motorcycle Hill, entre os campos 3 e 4